25 de novembro de 2010

Entrevista com Marina Abramovic

Por Fabio Cypriano na Folha de S.Paulo


Marina Abramovic possui uma energia contagiante. Após sua consagração na mostra "A artista está presente", no MoMA, ela segue cheia de projetos, como a nova mostra "Back to Simplicity", que será aberta amanhã (18), na galeria Luciana Brito, a peça "The Life and Death of Marina Abramovic", com estreia prevista em junho do próximo ano, e o Instituto de Arte da Performance, que será aberto em 2012, perto de Nova York.

Ela ainda quer trazer a retrospectiva do MoMA para o Brasil, assim como a nova peça. Leia sobre tudo isso a seguir:



O que significa "Back to Simplicity", que é o título de sua mostra?

MARINA ABRAMOVIC - Porque isso foi simplesmente necessário! A exposição no MoMA foi uma retrospectiva de tudo que já fiz e, ao mesmo tempo, uma nova performance. No começo havia duas cadeiras e uma mesa e, no final, decidi tirar a mesa e ficaram só as cadeiras. A performance durou três meses e, após tanto tempo, ela criou vida própria. E eu comecei a pensar em tantas coisas da minha vida, e, você sabe, a gente faz tanta merda em nossa vida, estamos cercados por tantos conceitos, tantos projetos e coisas desnecessárias, coisas que a gente coleciona, coisas que a gente quer, que eu realmente senti uma imensa necessidade de voltar à natureza, isso é, retornar a uma certa ritualização do cotidiano, como aproveitar o ato de beber um copo de água, segurar uma ovelha. Sabe, eu sempre me senti como uma ovelha negra, que não pertencia a nenhum lugar. E quando segurei a ovelha negra foi ótimo, mas aí precisava de uma ovelha branca e acabei segurando também um bode. Aí eu quis dormir embaixo de uma árvore, ou então descascar cebolas ou batatas. Esse tipo de coisa que nós esquecemos, porque estamos tão envolvidos com consumo, uma sociedade que nos faz cada vez mais querer mais e mais, que agora eu quero menos.

Na abertura do catálogo de sua mostra em SP há um "Manifesto sobre a vida do artista" [Leia íntegra no final desta entrevista]. Ele é recente?

Ele é muito importante. Eu já o escrevi há uns três anos. Manifestos são muito importantes para mim. Muitos artistas já produziram manifestos: os futuristas, os dadaístas, os artistas do Fluxus. Mas, de certa forma, manifestos ficaram fora de moda. Eu realmente acho que manifestos de arte são importante, porque de certa forma eles apontam para as novas gerações condições e perspectivas de questões morais que a arte deve respeitar como não se tornar um ídolo, ou não superproduzir seu trabalho, ou não se comprometer, coisas que acredito.

Uma das facetas em sua carreira é que você não só produz obras, como se preocupa muito em refletir sobre a arte em geral.

Eu acredito que eu sempre estou pensando na função da arte, eu acredito que a arte é um serviço para a sociedade, com uma função muito mais ampla que apenas produzir trabalhos de arte. Eu vejo isso como uma responsabilidade e, nesse século, mais que nunca. E uma dessas responsabilidades é com as novas gerações de artistas. Quando se alcança um certo grau de conhecimento e experiência é importante transmitir esse conhecimento e essa experiência. Ser egoísta não é uma forma de atuar, é preciso,
incondicionalmente, pensar nas novas gerações.

Essa é uma das razões porque agora penso em meu legado e quero criar esse Instituto de Arte da Performance. Mas ele não será uma fundação, porque senão seria para glorificar meu próprio trabalho e esse instituto não é sobre meu trabalho, mas sobre artistas produzindo seus trabalhos. Ele só terá meu nome porque eu creio que sou uma marca, como jeans ou coca-cola, e pelo meu nome, Marina Abramovic, as pessoas vão saber qual ele é sobre a performance, em geral, seja vídeo, música, teatro ou dança...

É verdade que lá você só vai apresentar trabalhos com mais de seis horas de duração?

Sim! Existem muitos centros de performance no mundo e a especificidade do meu serão trabalhos de longa duração, porque eu realmente acredito que apenas esse trabalhos têm a capacidade de mudar o artista ou quem o observa. Se você faz uma ação de uma hora, você ainda está atuando, mas depois de seis horas, tudo desmorona, torna-se verdade essencial. E para mim, esse tipo de verdade é muito importante. Posso dar um exemplo muito simples: pegue uma porta e abra ela constantemente, sem entrar ou sair. Se você faz isso por três, cinco minutos, isso não é nada. Mas se você faz isso por três horas, essa porta não é mais uma porta, ela é um espaço, o Cosmos, se transforma em outra coisa, é transcendente. Em todas as culturas arcaicas, rituais e cerimônias eram repetidas sempre da mesma forma e existe um tipo de energia que fica alocada nessa repetição que afeta também o público. Isso só se consegue em performances de longa duração.

Esse seu raciocínio me faz lembras que muitos dos artefatos usados por essas antigas civilizações eram apenas utensílios ritualísticos, religiosos, mas agora são denominados artísticos...

Acho que isso é um grande equívoco, porque acredito que o grande princípio da arte é que ela é uma ferramenta. Se arte é algo que só trata de um objeto, ela perde sua função. A arte tem que ser uma ferramenta para conectar ou questionar ou criar consciência no público, como qualquer outra coisa. Há uma ótima entrevista de André Malraux, quando ele era ministro da Cultura, na França, com Picasso, acho que nos anos 1950. Ele perguntou a Picasso porque ele tinha tantas máscaras africanas e ele respondeu que as máscaras eram muito importantes porque elas eram a chave, a ferramenta para os humanos se comunicarem com as forças divinas, com os espíritos, o desconhecido; e ele queria aprender a fazer o mesmo com suaspinturas.

Eu acredito que a performance também é uma ferramenta, e por isso os objetos, eles mesmos, não tenham valor. Quem tem valor é o processo e quando você passa por uma experiência, existe a transformação. Então a arte está completa. Mas para mim, arte fora de contexto e sem propósito, arte pela arte não alcança ninguém.

Em sua exposição em São Paulo há registros de trabalhos feitos nos anos 1970, reconstruídos agora. Como você os classifica?

Eu não os reconstruí, na verdade eu simplesmente nunca havia revelado esses negativos e eu tenho um imenso arquivo. Nos anos 1970, quando fizemos nossas performances, nós a registramos como documentação, memórias. Mas nunca os vendi. Eu realmente acredito que a memória do público precisa ser ativada, porque pouca gente viu aqueles trabalhos e agora eu os estou mostrando.

Na biografia que foi publicada recentemente, consta que você comprou todo esse arquivo do Ulay, é verdade?

Sim, é verdade. Quando nos separamos, ele ficou com tudo e isso foi um inferno! Então foram necessários seis anos para eu conseguir tudo de volta e ainda não foi um bom acordo, porque de tudo que eu vendo, ele fica com 20%, e como as galerias ficam com 50%, eu só fico com 10% a mais. Só que eu é quem trabalho um monte, em revelar, moldurar, organizar mostras...

No próximo ano você prepara uma peça com Robert Wilson, "The Life and Death of Marina Abramovic", certo?

Ela é a continuação de uma única peça que tenho feito e que é sobre minha vida, "Biografia". Comecei em 1989, com Charles Atlas, e a cada cinco ou seis anos, eu a refaço com um novo diretor, e eu cedo todo meu material, sem nenhuma condição. Eles têm a liberdade de fazerem o que quiser com minha história, alterar a cronologia, o que quiser. Eu não posso vetar nada. E uma coisa que estou exercitando muito em minha vida é abrir mão do controle.

Isso faz parte, inclusive, de minha idéia de reperformance, que é dar a possibilidade a jovens artistas de refazerem minhas performances, como eu refiz sete performances em "7 Easy Pieces", no Guggenheim, em 2005. Essa é a única forma da performance ter vida longa, senão elas são apenas matéria morta nos livros. E abrir mão de controle não é algo fácil para um artista, porque sempre dizemos meu trabalho, minha obra.

Com a direção do Robert Wilson, o Willem Defoe será o narrador e o Antony, do Antony & The Johnsons, está fazendo a música.

Você quer mostrar essa peça no Brasil?

Sim. Se alguém me convidar, eu venho correndo! Meu maior sonho se divide em dois: trazer a retrospectiva do MoMA para cá e também essa peça. Eu tenho a sensação que a jovem geração de artistas aqui realmente admira meu trabalho e eu adoro o Brasil, já vim muitas vezes, me sinto muito emocionada e até já fiz muitos trabalhos aqui.

Como você avalia sua retrospectiva no MoMA? Houve algumas críticas por conta das reperformances. Você viu os vídeos delas com seus estudantes, o que achou?

Sabe, eles não eram meus alunos. Meus estudantes europeus não puderam ir porque não conseguiram visto de trabalho para os EUA, lá eles são muito rigorosos com isso. Tive que fazer um novo casting lá!

Mas eu sou totalmente contra às críticas à reperformance, porque é muito fácil criticar. As pessoas precisam ter uma nova visão sobre isso porque afinal é algo novo mesmo e diferente do que eu fiz nos anos 1970. As pessoas são diferentes, as circunstâncias são diferentes. Muito gente tem nostalgia ou apreço pelo vintage. Eu estou de saco-cheio do vintage! Eu quero fazer performance honestamente e ter sempre uma nova vida! E por isso estou abrindo mão do controle.


Manifesto sobre a vida do artista
Marina Abramovic

1 a conduta de vida do artista:
- o artista nunca deve mentir a si próprio ou aos outros
- o artista não deve roubar idéias de outros artistas
- os artistas não devem comprometer seu próprio nome ou comprometer-se com o mercado de arte
- o artista não deve matar outros seres humanos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos

2 a relação entre o artista e sua vida amorosa:
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista

3 a relação entre o artista e o erotismo:
- o artista deve ter uma visão erótica do mundo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo

4 a relação entre o artista e o sofrimento:
- o artista deve sofrer
- o sofrimento cria as melhores obras
- o sofrimento traz transformação
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito

5 a relação entre o artista e a depressão:
- o artista nunca deve estar deprimido
- a depressão é uma doença e deve ser curada
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas

6 a relação entre o artista e o suicídio:
- o suicídio é um crime contra a vida
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio

7 a relação entre o artista e a inspiração:
- os artistas devem procurar a inspiração no seu âmago
- Quanto mais se aprofundarem em seu âmago, mais universais serão
- o artista é um universo
- o artista é um universo
- o artista é um universo

8 a relação entre o artista e o autocontrole:
- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra
- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra

9 a relação entre o artista e a transparência:
- o artista deve doar e receber ao mesmo tempo
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber

10 a relação entre o artista e os símbolos:
- o artista cria seus próprios símbolos
- os símbolos são a língua do artista
- e a língua tem que ser traduzida
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave

11 a relação entre o artista e o silêncio:
- o artista deve compreender o silêncio
- o artista deve criar um espaço para que o silêncio adentre sua obra
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento

12 a relação entre o artista e a solidão:
- o artista deve reservar para si longos períodos de solidão
- a solidão é extremamente importante
- Longe de casa
- Longe do ateliê
- Longe da família
- Longe dos amigos
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de cachoeiras
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de vulcões em erupção
- o artista deve passar longos períodos de tempo olhando as corredeiras dos rios
- o artista deve passar longos períodos de tempo contemplando a linha do horizonte onde o oceano e o céu se encontram
- o artista deve passar longos períodos de tempo admirando as estrelas
no céu da noite

13 a conduta do artista com relação ao trabalho:
- o artista deve evitar ir para seu ateliê todos os dias
- o artista não deve considerar seu horário de trabalho como o de funcionário de um banco
- o artista deve explorar a vida, e trabalhar apenas quando uma idéia se revela no sonho, ou durante o dia, como uma visão que irrompe como uma surpresa
- o artista não deve se repetir
- o artista não deve produzir em demasia
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte

14 as posses do artista:
- os monges budistas entendem que o ideal na vida é possuir nove objetos:
1 roupão para o verão
1 roupão para o inverno
1 par de sapatos
1 pequena tigela para pedir alimentos
1 tela de proteção contra insetos
1 livro de orações
1 guarda-chuva
1 colchonete para dormir
1 par de óculos se necessário
- o artista deve tomar sua própria decisão sobre os objetos pessoais que deve ter
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos

15 a lista de amigos do artista:
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito

16 os inimigos do artista:
- os inimigos são muito importantes
- o Dalai Lama afirmou que é fácil ter compaixão pelos amigos; porém, muito mais difícil é ter compaixão pelos inimigos
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar

17 a morte e seus diferentes contextos:
- o artista deve ter consciência de sua mortalidade
- Para o artista, como viver é tão importante quanto como morrer
- o artista deve encontrar nos símbolos da sua obra os sinais dos diferentes contextos da morte
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo

18 o funeral e seus diferentes contextos:
- o artista deve deixar instruções para seu próprio funeral, para que tudo seja feito segundo sua vontade
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida

Um comentário:

Fernanda Amaro disse...

Aninha, achei a Marina com um discurso bem hippie, bem como a gente gosta> voltar à natureza, durmir em baixo ou encima de uma árvore (lembre-se de hominideo, ir a uma cachoeira, segurar com as mãos qualquer coisa: RITUALIZAR!! Um simples gesto sem uma função útil faz de uma ação pragmática, um ritual! ...e dentre toda esta referência abramivicquiana, faz-se uma performance, um trabalho artístico, uma arte-ritual. . que propõe e engedra transformações no artista. por isso, antes arte que
ayahuasca!
beijos Aninha, obrigada por também disponibilizar na sua página esta entrevista e o manifesto (que é excelente).
até!